
Porque hoje é o Dia Mundial da Língua Portuguesa, aqui vai um texto: as últimas páginas (496-500) da “Quase Biografia” de Vieira, de minha autoria, livro publicado recentemente pela Academia Maranhense de Letras e que aguarda melhores dias para ser divulgado.
Quando da comemoração dos quatrocentos anos do nascimento do padre Antônio Vieira, em 2008, fazia quinhentos e dezanove anos que fora impresso o primeiro livro em língua portuguesa (1489), a tradução de um Sacramental castelhano para uso do clero na liturgia e na pastoral (já se tinha imprimido em Portugal um livro em hebraico um ano antes, a Torah ou Pentateuco). Ainda no século XVI as tipografias tinham-se espalhado pelos espaços do Padroado português no Oriente, em Goa, Cochim, Macau e Nagasáqui, divulgando a língua e a cultura ocidental. No Brasil só aconteceu e clandestinamente em 1747, cinquenta anos após a morte de Vieira (o texto impresso intitulava-se Relação da entrada que fez o excelentíssimo e reverendíssimo senhor D. Antônio do Desterro Malneiro, bispo do Rio de janeiro) e a divulgação dos livros na colônia foi severamente controlada até ao fim do governo do marquês de Pombal. Muitas das condenações da Inquisição ao longo do século XVIII tinham como origem o crime de possuir livros proibidos; o simples fato de possuir livros tornava uma pessoa normal suspeita de here-sia e até a leitura da Bíblia chegou a ser proibida. Quem possuísse uma biblioteca, mesmo que fosse um nobre da mais elevada estirpe, necessitava da autorização do Santo Ofício para possuir os livros que desejava. A suspeição que os censores e qualificadores dependentes do tribunal do Santo Ofício mantiveram desde as primeiras publicações e durante séculos a propósito dos escritos de Vieira, assim como a irracional perseguição pombalina a tudo quanto tinha origem em jesuítas, dificultou consideravelmente a divulgação da obra do maior gênio da nossa literatura, tanto em Portugal como no Brasil. Só em 1808 é que a Imprensa Régia chegou ao Rio de janeiro, graças à retirada de D. João VI de Portugal, quando já se multiplicavam tanto no reino como na colônia as academias, havia mais de um século. Apesar dos muitos obstáculos que perturbaram a divulgação da sua obra, Vieira contribuiu mais do que qualquer outro para a difusão e o enriquecimento da língua portuguesa por todo o espaço do domínio político e econômico no tempo colonial e depois dele. Hoje a língua portuguesa cresce no mundo ao ritmo da emergência de países jovens e ambiciosos que conquistaram o respeito e a admiração de milhões de pessoas de outras culturas, empenhadas em estudar por todo o mundo a língua e as expressões culturais dos povos que dizem o que sentem e o que esperam do futuro no idio-ma inconfundível de Antônio Vieira.
No maior e mais dinâmico espaço político onde se fala o portu-guês, tudo
começou nas praias de Porto Seguro, na costa agora chama-da do Descobrimento, a
terra do primeiro encontro, visitada hoje por forasteiros do mundo inteiro, que
vêm em cata da mesma beleza que encantou os rudes marinheiros de quinhentos.
Eles deixam-se seduzir pelos vestígios vivos de uma civilização que se
construiu ao longo de cinco séculos de paixões e de utopias.
Quando Pedro Álvares de Gouveia (mais tarde Cabral) partiu de Lisboa com
destino à Índia, viagem que o trouxe até às praias de Porto Seguro, levava na
nau-capitânia uma réplica da imagem de Nossa Se-nhora da Esperança, a padroeira
da sua terra natal, Belmonte, vila es-condida nas serranias da província da Beira
Alta. A imagem foi à Índia e voltou; é de pedra, muito antiga, pesa quase cem
quilos e representa Nossa Senhora com o Jesus menino ao colo, sustentado pelo
braço es-querdo de sua mãe que tem na mão direita uma pomba. A mãe olha para o
filho com admiração e o menino olha para a pomba com curiosi-dade e carinho.
Foi talvez essa imagem que enfeitou o altar da primeira missa no Brasil,
celebrada a 26 de abril de 1500, no primeiro Domingo depois da Páscoa. De
seguida começaram a chegar outros forasteiros, cada vez mais numerosos, chegou
a cana-de-açúcar da ilha da Madeira, chegaram escravos negros do continente
africano, aconteceram guerras, desastres, euforias e paixões. No ano de 1940
Portugal festejou com uma grandiosa exposição os oitocentos anos da sua fundação
(1140) e os trezentos anos da Restauração (1640); o Brasil ofereceu a Portugal
uma réplica da estátua de Cabral que se encontra no Rio de Janeiro e Portugal
ofereceu ao Brasil uma réplica da imagem da Senhora da Espe-rança da igreja de
Belmonte.
O ano de 2008 foi particularmente importante para Portugal e Brasil, pela
comemoração de importantes eventos que marcaram a his-tória dos dois países: os
duzentos anos da chegada da corte e da família real ao Brasil e os quatrocentos
anos do nascimento de um dos maiores portugueses e brasileiros de todos os
tempos, o padre Antônio Vieira. Algo de espetacular ficou por acontecer para
mostrar ao mundo inteiro a importância e o significado das comemorações, um
MEMORIAL em honra de Vieira e a concretização de um consensual e inteligente
acor-do ortográfico, homenageando a prodigiosa língua que a partir de um espaço
pobre e despovoado dos confins ocidentais da Europa, desde que o rei D. Dinis a
impôs como idioma oficial do reino em 1290, se fez grande e se transformou num
dos principais idiomas do planeta. Todas as civilizações são mortais, algumas
delas eternas enquanto duram. Como dizia Vieira dos portugueses, um pequeno
espaço para nascer, o mundo inteiro para crescer e morrer. Nunca é tarde para
nascer, a morte é que pode esperar. Nenhum fonema dirá, nenhuma toada
despertará a saudade do futuro.
O céu strela o azul e tem grandeza.
Este, que teve fama e à glória tem,
Imperador da língua portuguesa,
Foi-nos um céu também.
No imenso espaço seu de meditar
Constelado de forma e de visão,
Surge, prenúncio claro do luar,
El-rei D. Sebastião.
Mas não, não é luar: é luz do etéreo.
É um dia; e, no céu amplo do desejo,
A madrugada irreal do Quinto Império
Doira as margens do Tejo
(Fernando Pessoa, 1929)