José Rodrigues Paiva.
Celebrando Camões.
Recife: Associação de Estudos Portugueses Jordão Emerenciano, 2016, 82 p.
AGRADEÇO AO PROF. DOUTOR MANUEL FERRO, DA FACULDADE DE LETRAS DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA, A GENEROSA RESENHA QUE FEZ DO MEU LIVRO “CELEBRANDO CAMÕES”, PUBLICADA NA REVISTA ACADÊMICA “LIMITE” E QUE TRANSCREVO A SEGUIR:

Manuel Ferro
Universidade de Coimbra
ferro@fl.uc.pt
Quatro são os ensaios de fundo de José Rodrigues de Paiva reunidos no volume recentemente editado que se destina a celebrar o poeta maior da língua portuguesa, tal como na capa é de imediato sugerido, quer pelo título, quer pela ilustração que reproduz uma gravura de Forsell com desenho de A.-J. Desenne, da edição d’Os Lusíadas do Morgado de Mateus, de 1817. O aparecimento deste livrinho impõe-se agora num momento determinante da carreira do autor. Quando se multiplicam as homenagens que lhe são dirigidas, consagra ele este preito a um dos poetas que mais o marcaram e inspiraram, constituindo esta obra também um ponto de chegada do seu percurso de académico no âmbito dos estudos camonianos. O brilhante trajeto do autor enquanto escritor, crítico, investigador e docente universitário na Universidade Federal de Pernambuco é esboçado no final do volume numa súmula brevemente designada por “O autor”. Entre a atividade desenvolvida, refira-se ainda o facto de ter sido fundador e diretor das revistas Encontro, do Gabinete Português de Leitura do Recife, e Estudos Portugueses, da referida Universidade, participando ainda com diversas e díspares intervenções dentro e fora da instituição universitária, em projetos de extensão e pesquisa, bem como na colaboração sempre ativa em publicações de índole variada.
A enquadrar os ensaios abre-se o volume com uma “Nota prévia”, onde se expõem informações pertinentes para o esclarecimento das circunstâncias de composição e publicação dos textos aqui reunidos. Dois deles haviam já integrado uma plaquette editada em 2001 pela Associação de Estudos Portugueses Jordão Emerenciano, ostentando o mesmo título. Pelo facto, assume-se esta publicação como uma segunda edição, muito embora consideravelmente ampliada. Como denominador comum, resultam todos os textos nela incluídos por serem o resultado de idênticas conjunturas, ou seja, solicitações feitas para intervenções do autor em sessões solenes para comemorar o dia de Camões, de Portugal e das Comunidades Portuguesas no mundo.
Em “Camões, a pátria simbolizada” – texto datado de 1995 –, começa o autor por tratar da escolha da data do dia de Camões como dia de Portugal, passando em revista outras datas que poderiam eventualmente ter sido escolhidas para semelhantes comemorações, acabando por relevar a importância simbólica de Camões enquanto figura exemplar maior de um povo, da sua mundivisão e modo de sentir, muito particularmente numa época de esplendor, e enquanto seu maior representante no campo das letras. Como é dito, é o cantor do expansionismo, descobertas e conquistas, mas também quem medita sobre a rotina dos que permaneceram em terra. “Sob a ótica e a ética do Renascimento, a construção de um Império como projeto civilizacional […]” implicava “levar aos confins do mundo a civilização ocidental […]” enquanto “obra missionária, até porque significava, também, a expansão da Fé” (p. 20). Dessa herança, resulta hoje uma comunidade dispersa pelo globo, “tão espiritual quanto aquele [Império] preconizado por Vieira, o da comunhão com os povos, o da busca da modernidade, o da cultura, o de uma língua presente em toda a parte do mundo e que por isso é uma Pátria também” (p. 21). Por isso, o leitor é levado a entender o sentido das celebrações do 10 de Junho: “[…] não é uma data política ou uma data histórica em que se celebre o Estado português, é uma data simbólica (estou quase a dizer uma data sagrada) em que se celebra a Alma portuguesa na Alma e na obra do Poeta que a representa” (p. 19), porque assim como Luís de Camões “foi a síntese perfeita das tendências literárias do seu tempo, seria, também, a síntese única e em todos os tempos da nossa história cultural, de uma muito específica maneira de ser português” (p. 17).
O segundo texto, intitulado “Celebrar Camões, celebrar Portugal, o Brasil e a Língua Portuguesa” foi redigido num ano específico, em 2000, numa data em que às do Poeta e de Portugal se associavam as comemorações do descobrimento do Brasil. Arranca com uma notável citação de Vergílio Ferreira, autor da predileção do autor, de que é um especialista privilegiado, sobre o qual dissertou nas suas teses de Mestrado e Doutoramento: “ Da minha língua vê-se o mar”, que justamente considera poder ter sido proferida pelo Poeta celebrado. É este texto um ensaio profundo que pressupõe todo um conhecimento perspicaz da literatura e da história da cultura portuguesa, de Quinhentos aos nossos dias, e uma penetrante reflexão “sobre Camões, sobre as comunidades portuguesas espalhadas pelo mundo, sobre o Brasil” (p. 25). É que da língua portuguesa se vê, ouve, fala e lê o mar de Portugal, do Brasil, de África e do Oriente, numa especificidade e universalidade dificilmente encontradas noutras línguas e culturas. Celebrar Camões impõe-se, assim, enquanto comemoração das pátrias lusófonas, de todos os poetas em língua portuguesa, de cada português e de todos os portugueses espalhados por cada canto do globo. Por conseguinte por mais variadas que tivessem sido as faces que lhe atribuíram, Camões, mais do que Poeta do Império e da ideologia expansionista, de que o Brasil era parte integrante embora de recente achamento, também foi o Poeta dos críticos, da censura do Velho do Restelo, contrapondo um Império da Fé e da Civilização amparado pela ética renascentista ao projeto mercantil em que se desvirtuara, assim como seria o “desamparado poeta do desamparo” – e todas essas faces fazem dele o Poeta espelho de outros poetas, independentemente das Pátrias donde são provenientes, mas que por causa delas, das respetivas ideias e desconcertos do mundo sofrem o exílio, a pobreza e a saudade (Cf. p. 29). Por isso, se configurou o mito camoniano, de modo particular no século XIX, assumindo a figura do Poeta o estatuto não só de tema literário, como também motivo inspirador de artistas plásticos.
Invocando a lúcida análise dos mitos e de Portugal levada a cabo por Eduardo Lourenço, ainda se recorda o uso feito da imagem de Camões enquanto poeta da raça, de matriz lógico-positivista, e consequente versão nacionalista; pelo Saudosismo; por Eça de Queirós, enquanto expressão da decadência do país; para chegar à imagem de um Poeta do Império de uma Língua e uma Cultura que ajudou a modernizar, enfim, um império espiritual de uma Comunidade de 200.000.000 de falantes de todos os quadrantes, ligados pelo mar. Por isso, era também do mar que Pêro Vaz de Caminha viu na nova terra descoberta, os homens, a amizade e a Fé – o testemunho fundador da futura comunidade luso-brasileira, construída com todos os defeitos e vícios que um processo de colonização implicava. Urgindo “compreender a História e os homens e as circunstâncias de que ela é feita”, interpela o autor aqueles que questionam esta perspectiva, de que o Brasil é a obra maior que o português criou, contrapondo a invocação de nomes como Anchieta, Manuel da Nóbrega e António Vieira – também este preconizador de um “Império sonhado, o da cultura, da civilização, do espírito, da Língua…” (p. 37) – como exemplos de supranacionais, dessa Comunidade construída com e pelo idioma de Camões. A esses junta ainda Pessoa, Sophia e Saramago; Alencar, João Cabral e Gilberto Freyre; Jorge Amado, Cardoso Pires e Guimarães Rosa; Baltasar Lopes, José Craveirinha, Mia Couto e Pepetela, além de muitos mais que se podiam enunciar. Por conseguinte, citando Vergílio Ferreira – “Camões instaura em nós uma imagem de nós, desenvolvendo todas as nossas virtualidades em que possamos rever-nos por inteiro” (p. 38) –, conclui que Camões é “um poeta que paira acima de todas e quaisquer circunstâncias da História, da política e das ideologias sejam quais forem os seus propósitos. Um poeta da Língua Portuguesa, um poeta do espírito de comunidade. É este o nosso Camões, o Camões que queremos” (p. 33).
“O amor dos deuses e dos homens: paixão, sensualidade e erotismo n’Os Lusíadas” dá o nome ao terceiro texto datado já de 2013. Partindo do pressuposto de que, “como tantas outras [obras] que o tempo, a tradição, a recepção e a alta qualidade estética tornaram clássicas, Os Lusíadas também se popularizaram entre erros e acertos, entre equívocos e reduções, entre simplificações e desvios de sentido” (p. 39), o autor do texto propõe a sua leitura, evidenciando que, além de um poema sobre viagens, guerras e conquistas, se trata de um poema do amor e sobre o amor (Cf. p. 41), “do amor dos homens e dos deuses e da representação da paixão, da sensualidade e do erotismo” (p. 41-42). E tudo isso enquadrado na mundivisão renascentista assim sumariamente condensada:
“A epopeia de Camões não se submete a reducionismos porque, como poema renascentista, aspira à totalidade, à universalidade, ao integral saber de todo o conhecimento da época, ao universal sentir de todos os sentimentos humanos. Por isso lá estão toda a ciência do tempo, e toda a técnica (sobretudo a das navegações), todo o conhecimento do homem, do mundo e do cosmos, toda a História, a tradição, a cultura, a religião, a filosofia, a literatura… por isso, na épica camoniana convivem em harmonia elementos tão aparentemente díspares como a História e a mitologia, a realidade e a lenda, o bélico e o amoroso na violência das guerras e na suavidade do amor.” (p. 41)
Se na obra maior do Poeta convivem estas facetas tão variadas, não admira que uma atenção especial seja dada ao humano, ao sentimento, ao amor, incluindo a sua vertente sensual e erótica.
Assim, começa-se por apontar a primeira manifestação de amor sensual e erótico na epopeia no plano superior das divindades mitológicas – o da sedução de Júpiter por Vénus, no concílio dos deuses –, pondo em evidência os encantos físicos da deusa. Os restantes episódios abordados são: o de Inês de Castro (Canto III); o do Adamastor (Canto V); e o da Ilha dos Amores (Cantos IX e X).
Se bem que o de Inês de Castro, no plano da História e do humano, seja equiparado a “um suave intermezzo” (p. 46), muito embora tingido pelas cores da tragédia, trata do amor humano, do espontâneo sentimento da paixão que não conhece razões de qualquer natureza. Tornando-se a pedra basilar do “mito inesiano”, do “mito do amor português”, imortalizado na literatura desde a morte da heroína até aos nossos dias, nele apenas veladamente chegamos às “razões ou desrazões da perdição amorosa de Pedro e Inês: as da beleza do corpo feminino” (p. 48), não se evidenciando detalhes relacionados “nem sensualidade, nem erotismo”, mas sim paixão avassaladora.
O episódio a seguir tratado, o do Adamastor, de novo no plano do mito e dos deuses, privilegia, sim, a sensualidade e o erotismo, desta vez castigados e não premiados pela audácia e ousadia do protagonista, mais até do que o amor-sentimento. Neste passo, além da convergência do plano histórico, com o simbólico e o mitológico, adensada pelas oposições patentes entre o belo e o grotesco, na violência da ameaça e predição dos desastres dirigidos aos navegadores e na sublimidade do sofrimento amoroso, todos os ingredientes bem podem contribuir para que este episódio se adeque à tradição do locus horrendus. Em contraposição a este, o da Ilha dos Amores, marcado pela plenitude de claridade apolínea, alegria de viver, satisfação dos sentidos e do conhecimento, é o prémio de Vénus, a recompensa aos esforçados navegantes. Num espaço configurado segundo os cânones do locus amoenus, a ilha apresenta-se com um lugar ideal, paradisíaco, de felicidade e alegria, onde a flora exuberante representa um constante convite à luxúria e prazer sensual. Pelo facto, se os navegadores ficam na expetativa de semelhante terra ser rica em caça, logo verificam tratar-se de ser estranha a “caça” encontrada. E a cena transforma-se na apoteose suprema do prazer dos sentidos, da alegria de viver, da plenitude sensual e erótica, no único momento em que deuses e homens se encontram e se relacionam. Por consequência, devido a esse caráter de puro paganismo e carga sensual e erótica, logo os censores ao longo dos tempos o classificaram de imoral e anticristão, mutilando o poema do pleno conhecimento do público leitor, não obstante, depois da descrição da “máquina do mundo”, se declarar que o pleno conhecimento é do verdadeiro Deus, que ninguém está em condições de entender, e os deuses pagãos apenas assumirem uma função simbólica com objetivos deleitosos.
Por último, “Camões, poeta e soldado: um homem entre as musas e as armas” foi o único texto do volume que não foi composto para ser apresentado no Gabinete de Leitura do Recife, mas a convite do Instituto Cervantes do Recife e da Fundação Artístico-Cultural Iberoamericana, no auditório do Museu Militar do Forte do Brum (Recife) em 2015. É o binómio das “armas” e das “letras”, de que o próprio Poeta é legítimo representante, que serve de ponto de partida para a reflexão aqui apresentada, na medida em que os estereótipos de “poeta” e de “soldado” parecem à primeira vista excluir-se ou pouco terem em comum. No entanto, no Renascimento, o modelo de homem idealizado pressupunha uma formação englobante, enciclopédica, que reunisse as qualidades de bravura e sensibilidade, em simultâneo com coragem, determinação e lealdade, associadas a cortesia, suavidade de trato e cultura. Vários são, pois, os nomes citados, quer do contexto português, quer do espanhol e até do brasileiro que o materializam de maneira exemplar. Tal modelo viria depois, no século XIX a ser recuperado e atualizado com o comprometimento dos intelectuais nas lutas liberais e de libertação dos povos. Contudo, o paradigma mais acabado deste tipo de escritor-soldado é o próprio Camões, que encontra em Espanha um paralelo na figura de Miguel de Cervantes Saavedra, pelo que uma breve biografia comparada se esboça, afim de mostrar que não só nos aspetos focados, mas até em momentos de adversidade se aproximam ambos os autores nos respetivos percursos de vida. A rudeza da carreira castrense não impedia que poetas, como Camões, fossem versados nas mais agudas subtilezas dos códigos líricos da época, como as que o neoplatonismo proporcionava para o tratamento do amor contemplativo. A par, exaltava-se a disciplina militar fundada na prática e na experiência do quotidiano, e ainda em díspares funções e missões. Por isso, quer na lírica, quer na épica camonianas, o conhecimento do mundo físico e humano emparelha com o domínio patenteado na exposição da técnica e da estratégia militar nas descrições de batalhas e recontros sangrentos e impetuosos. “Armas e letras”, “Sapientia et fortitudo” são, pois, dois eixos do ideal cortesão de Quinhentos, fundados no “honesto estudo, com longa experiência misturado” (p.76). Como tal, também, no Dom Quixote tal tema não poderia deixar de estar presente: no discurso sobre as armas e as letras”, dos capítulos XXXVII e XXXVIII, são esses os tópicos sobre os quais se disserta. No entanto, não como aspetos complementares, mas como suportes de modelos diversos, um como o fundamento da sensibilidade para o exercício das letras e outro como base da prática das armas, por sua vez o suporte do ideal de virilidade renascentista. Na linha do que expõe em todo o poema, não deixa de ser curioso, no entanto, que no final d’Os Lusíadas, o Poeta se apresente a si próprio, pelo saber intelectual, engenho e arte nos campos das letras e destreza no das armas, bem como pela experiência de vida, como modelo de cortesão e conselheiro perante o Rei D. Sebastião “ Pera servir-vos, braço às armas feito; / Pera cantar-vos, mente às Musas dada”.
À semelhança de tantos camonistas que reúnem em volumes de ensaios os seus trabalhos antes dispersos, nada falta a este volume para, honrada e brilhantemente, emparelhar com eles. Os assuntos, temas e tópicos acima apresentados surgem finamente analisados, explorados e expostos e decerto que os ouvintes que tais intervenções escutaram nos momentos celebrativos saíram delas mais ricos, mais sabedores e conhecedores da arrebatadora obra camoniana.
LIMITE, 186, VOL. 10.2, RESEÑAS/RECENSÕES CRÍTICAS, pp. 185-192.
